Entrevista com Nena Galves
Ainda este ano, em homenagem ao centenário do grande amigo, Nena Galves irá inaugurar no Centro Espírita União, no bairro do Jabaquara, em São Paulo, o Acervo Chico Xavier. Ela já está preparando um vasto material, parte dele guardada na suíte do médium, em sua casa, que o hospedava todas as vezes que vinha à capital paulista.
Os encontros de muitas histórias, que segundo ela já vêm de reencarnações passadas, duraram desta vez 43 anos, e guardam segredos acumulados de longas conversas, comentários e opiniões num cotidiano recheado de dedicação e cumplicidade. Muitos deles ficarão com Nena – assumidamente – e não serão revelados. Como toda relação de união e convivência, eles têm uma história reunida num farto acervo de fotos, documentos, gravações e lembranças. Momentos de alegria, de desafios, de fé, de vida. Há até mesmo o testamento de Chico, o qual Francisco Galves, marido de Nena, assinou como testemunha.
A amizade foi relatada e documentada no livro Até sempre Chico Xavier (editora CEU), de autoria de Nena Galves, sucesso na Bienal de São Paulo em 2008, e traz detalhes dessa convivência, revelando momentos de intimidade familiar e de vida pública. Afinal, juntos aprofundaram-se no estudo do espiritismo e assumiram responsabilidades assistenciais e editoriais. Afinal, apesar das visitas frequentes de Chico aos Galves, e depois das idas e vindas do casal a Uberaba, acompanhando o médium até a sua desencarnação, aos 92 anos, em 30 de junho de 2002, ainda havia o encontro anual público, no Centro Espírita União, em outubro, em homenagem a Kardec, oportunidades em que o médium atendia a milhares de pessoas, e psicografava inúmeras mensagens.
Em entrevista exclusiva ao jornal Correio Fraterno, Nena Galves confessou a dificuldade de se desprender do que Chico deixou com ela, mostrou o espaço que comportará seu acervo e enalteceu a grandeza espiritual do médium. Sem idolatria, mas com profunda gratidão e respeito, explicou porque não o reconhece em nenhuma das mensagens recebidas após a sua desencarnação. Alertou ainda para o risco dos espíritas obscurecerem sua imagem e obra, por ingenuidade. Para Nena Galves, os espíritas precisam aprender a pensar grande, na universalidade do espírito Francisco Cândido Xavier. O Chico não é nosso – conclui.
Sobre o que vocês conversavam tanto?
Falávamos sobre todos os assuntos. Posso dizer que tive um mestre. Quando eu dizia, por exemplo, que estavam aparecendo muitos médiuns querendo psicografar, ele explicava: “Nena, a psicografia é difícil; você deve colocá-los primeiro na incorporação, porque onde ficam as pessoas que estão compromissadas com esses espíritos mais necessitados? Na psicografia, só vem mentor…” Ele me ensinou o que não está nos livros, como um irmão. Talvez por nossa ligação do passado não havia inibição, pois Chico nos reconheceu desde o nosso primeiro encontro, quando fomos a Uberaba. Lembro que o Galves, na época, até comentou comigo: “Nena, acho que eu vou morrer logo, porque o Chico me tratou tão bem!”
A sra. deixou de perguntar a ele alguma coisa?
Não. Perguntei tudo o que queria. Acho que falei demais. Devia ter ouvido mais e falado menos. É disso que eu me arrependi…
Como era essa convivência em família?
Ele sempre se hospedou na minha casa. Tenho todas as roupas que ele usava no trabalho social aqui em São Paulo, porque não as levava para Uberaba. Há também mais de quinhentas fotografias, das viagens que fazíamos a serviço da doutrina e de cerimônias com a minha família. Ele conheceu meu filho com dez anos, hoje ele está com 60. Foi à formatura deles e testemunha no casamento dos dois. Temos os títulos recebidos de todas as cidades que fomos juntos. Ele recebia as homenagens e me dava os diplomas, as condecorações. Há uma medalha linda que ele ganhou, quando foi homenageado no Pacaembu, aqui em São Paulo, para receber a cidadania. Esse acervo tinha que vir para o Centro.
Por que ele deixava tantas coisas na sua casa, tantos documentos importantes?
Chico via no espaço e no tempo, ele sabia que eu não iria me desfazer disso e nem trocar por favores.
A sra. já pensava em guardar esse material todo e formar um acervo?
Não. Nunca. Nunca pensei nisso, senão teria guardado tantas outras coisas; eu mesma teria pedido material a ele. Reformamos um lugar aqui no Centro Espírita União só para compartilhar o que temos. São documentos raros que precisam ser expostos em móveis especiais, material histórico do movimento espírita, livros que ele lia. E Chico lia de tudo, desde o jornal do dia, revistas, até livros raros, da codificação… E os 18 anos que ele fez de autógrafos aqui no União? Onde iria deixar esse material, se não no lugar onde ele ficou? As fitas originais do programa Pinga-Fogo também irão para o acervo, dois enormes rolos cinematográficos.
Que vibração a sra. sente com esse material, hoje?
Não está sendo fácil me desprender dele. Conviver com Chico, como médium e como ser humano, foi muito gratificante. Não se pode separar uma coisa da outra. Não posso idolatrá-lo porque o conheci muito bem. Durante mais de quarenta anos, sem nunca nos decepcionarmos, o que não é fácil. Por isso hoje podemos dizer que reconheceríamos qualquer comunicação dele.
O que, para Chico, não poderia acontecer?
Ele conhecia muito bem o ser humano e sabia de seus limites, respeitando o livre-arbítrio de cada um. Não se indignava, não usava o “isso não pode acontecer” como nós usamos, mas o “cada um faz o que pode”. Lembro-me de que ao receber o convite para falar na Rádio Boa Nova, num dia de autógrafo no Clube Juventus, eu comentei: “Imagine, Chico, se eu vou fazer um programa de rádio…” E ele: “Ah, Nena, eu, se fosse você, faria.” A rádio estava começando, só pegava até Santana. Fazendo referência ao complexo penitenciário que ficava no bairro, ainda comentou: “Mesmo que fosse para falar só para os reeducandos, eu o faria.”
Conte-nos, dona Nena, mais detalhes dessa convivência.
Ele era muito disciplinado e ao mesmo tempo divertido. Conseguia ficar conversando madrugadas inteiras. Dizia que a gente não tinha reencarnado para dormir. Dormia quatro, cinco horas no máximo. Trazia as correspondências para colocar em dia, trabalhava de madrugada… Também viajávamos, andávamos pelas ruas de São Paulo, íamos a teatros e restaurantes. Chico comia muito bem. Nos últimos tempos, quando não podia mais vir, nós íamos a cada vinte dias visitá-lo. Na última visita, demoramos uns dias a mais e, quando chegamos, ele disse: “Vocês demoraram demais, eu estou partindo…”
Com toda a amizade que vocês tinham, ele revelava coisas diferentes a vocês, segredos?
Sim, muitas coisas. Ele falava e ainda dizia: “Não deixem vir a lume antes do tempo…”
E a sra. ainda guarda muitos segredos?
(Pensativa) Sim… Segredos que eu preciso levar comigo… Por isso que eu conheço bem as comunicações, quando digo: “Não é Chico!!!”
A sra. quer dizer que Chico não deu nenhuma comunicação?
Eu não encontrei a linguagem que o identificasse ainda.
Nunca mais a sra. falou com ele?
Muitas vezes!!! De madrugada. Faço aniversário dia 21 de fevereiro. Talvez, com tantos problemas a resolver, perguntas e entrevistas, devido às comemorações de seu centenário, eu realmente estava precisando muito de socorro. Tenho orado, lembrado dele, chorado, com saudades. Numa madrugada acordei e disse ao Galves: “Estive com o Chico! Eu sei que estive com ele. Fui visitá-lo em Uberaba. Alguém disse que ele não podia me atender. Fiquei vendo-o de longe, mas logo ele veio caminhando, colocou a mão no meu ombro e disse: ‘– Nena eu vou te dar um presente.’ Tirou de dentro do bolso do paletó uma pedra, uma ametista linda e entregou-me dizendo: ‘Guarda-a com você…’ Dei um beijo nele e acordei.” Fiquei tão feliz, em estado de graça. Vindo para o Centro, comentei sobre o meu sonho com uma pessoa. Quando acabei de contar, ela começou a chorar. Ela tinha comprado dois dias antes um anel de presente para mim, justamente com a pedra do sonho. Isso é um exemplo de que Chico não precisa escrever para se comunicar, não precisa de um lápis. Será que não bastaram mais de 450 livros? Nem entendemos tudo o que ele deixou e, pior, andam contando tanta bobagem do mundo espiritual, quando ele já nos trouxe tudo tão explicado, tanta coisa linda sobre os espíritos. O que querem mais? Fofoca? Ele não precisa falar mais nada…
Mas por que ele não se comunicaria também, uma vez que tem todo o conhecimento para fazê-lo?
E você acha que é fácil, no mundo espiritual? E tem mais: será que já não recebemos tanto? Já parou para pensar que há o planeta, o universo inteiro e tanta gente precisando de espíritos como ele? Não tenho dúvida de que Chico foi um apóstolo de Jesus. Será que o mundo maior já não mandou esse espírito para o Brasil para nos auxiliar? E a grande pergunta: só existe o Brasil? Somos muito pretensiosos. Tenho visto muito espírita pensar pequeno!
O que faltou Chico psicografar, deixar escrito?
Ele escreveu tudo. Há três fases: a esclarecedora, que é a coleção André Luiz, que mostra como se vive, o que se faz, conta tudo da vida espiritual, a dos romances de Emmanuel, com os comentários do Evangelho, mensagens, e por último a fase consoladora, com as mensagens dos filhos aos pais.
A sra. acredita que Chico vai reencarnar logo?
Ele realmente não queria ficar muito tempo no mundo espiritual. Queria reencarnar logo, tomar corpo e começar novamente a trabalhar. Mas acho que a espiritualidade não vai deixar ele voltar tão depressa, porque ele trabalhou tanto, desempenhou tão bem a sua tarefa… Acho que os pedidos, mesmo os dele, serão reanalisados, inclusive por ele. E se vier alguém mais acima dele, uma Veneranda, dizendo: “Chico, nós precisamos de você em outro lugar?” É preciso pensar grande. Outra coisa que estão falando por aí é que Chico era ecumênico. Era ecumênico para os outros, mas para ele era espírita, seguia Kardec.
Na sua opinião, o que está acontecendo agora? Será que precisávamos passar por isso, para criarmos mais autonomia como espíritas?
Você já estudou, quando uma colônia vive para um país, que tem a sua custódia por ser mais evoluído? Quando vem a lei da liberdade, passa-se a achar que se pode tudo e, depois, muitas escolhas têm que ser reparadas. Hoje há tantos sábios espíritas, tantos médiuns, tantos escritores que é como se estivéssemos com medo de Chico e, agora que ele fechou os olhos, todos começaram a fazer o que sempre tiveram vontade.
Chico impunha respeito, tinha autoridade moral. É isso?
Sim. Alguns anos antes de Chico desencarnar, já debilitado, eu segurando as mãos dele, ele me olhou e perguntou: “Nena, Nena, o que eu estou fazendo aqui? Não trabalho, não posso fazer nada, sou um estorvo. Eu queria passar para o plano espiritual, reencarnar e tomar um corpo novo, porque, o que eu faço com essa carcaça?” Respondi que ele estava assim por misericórdia, porque os espíritas sem ele ficariam como as virgens loucas do Evangelho. Anos se passaram, Chico melhorou, ficou mais um tempo conosco e se foi. E ficam preocupados, agora, em saber quem vai ficar no lugar do Chico. Quem disse que o espiritismo precisa de líder?
(Publicada no Jornal Correio Fraterno, edição 432, março/2010)
Por Eliana Haddad
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